Notícias sobre a Letra Livre públicadas na imprensa
2023-03, Público
O combate civilizacional pelos livros e pela leitura
Pacheco Pereira
O problema é o mito perigoso de que a “leitura”, mesmo numa forma diferente, está a emigrar de um meio para outro, porque não está.
2022-08-26, Timeout
«Independentes ou mais comerciais, estas livrarias em Lisboa servem todas o mesmo propósito: aumentar a sua colecção lá de casa.»
2015-09-30, Revista Punkto
«A Ordem, pois. Graças a ela cresceram e multiplicaram-se, desfizeram-se e reciclaram-se Clãs, Tribos, Nações, Estados, Impérios. Por mor dela se ergueram torres e torres e pirâmides sociais – do maralhal da base aos sobas do topo. Para assegurá-la se armaram milícias, mercenários, verdugos, policias, tropas. Para espiritualizá-la se esgalharam metafísicas, credos, filosofias, catecismos. É que os homens são uns eternos insatisfeitos e depois há por ai, houve sempre e haverá, demasiado gentio a agredir meio mundo com a exibição das suas misérias e a vociferação dos seus rancores, quando não pronto a dar o corpo ao manifesto em momentos de aperto. Que fazer, na circunstância? Toca a salvaguardar os Valores, e à má-fila: com pau, calhau, pez, pistola, canhão, gás, granada, napalm, bomba atómica, que sei eu?, hipoteca e arresto de bens. Na Propriedade ninguém mexe porque é sagrada e o resto são conversas. Logo, decorre daí que não há guerra que não seja santa e como tal justificada: vá pois de malhar em mim, no sindicato, na greve, na revolta, na insurreição, no terrorismo internacional, no Inimigo à vista e a ver vamos. Nem que o berlinde estale de vez, dissipando-se na eternidade. Sem Valores é que nada feito…»
Nota da edição da Punkto
Este texto de Vítor Silva Tavares foi publicado como prefácio à edição de “A Religião do Capital” de Paul Lafargue, traduzido pelo próprio Vítor Silva Tavares e por Célia Henriques e publicado em Abril de 1996 pela &etc. Transcrevemos e publicamos este texto como homenagem a Vítor Silva Tavares, que morreu no dia 21 de Setembro de 2015.
2015-09-21, Público
KATHLEEN GOMES e LUCINDA CANELAS
Vitor Silva Tavares, 78 anos, morreu nesta segunda-feira de manhã no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde tinha sido internado uma semana antes devido a uma infecção cardíaca. A família pretende fazer uma cerimónia privada e prefere não divulgar publicamente informações sobre a mesma.
Os livros ficam, o editor desaparece. Era fácil ficar horas a ouvir Vitor Silva Tavares porque já ninguém fala como ele, um português de língua afiada e refinada, elegante e pé-descalço (ele diria: “do melhor Gil Vicente”), algo que partilhava com o amigo João César Monteiro, tanto quanto a magreza e o espírito libertário. Em 2014, quando o PÚBLICO falou com ele a propósito da edição da obra escrita de César Monteiro, Vitor Silva Tavares confessou que a morte do cineasta, em 2003, deixara um vazio que não tinha sido preenchido. Silva Tavares referia-se a um vazio pessoal, naturalmente, mas também estava implícito um vazio colectivo. O mesmo acontece agora, com a morte de Silva Tavares, um dos mais originais e radicais editores portugueses. É toda uma geração, de resistência cultural e política, que tem os dias contados.
“Perdemos o último dos resistentes, o pai de gerações e gerações de poetas. Há muita gente que lhe vai sentir a falta. Mesmo muita”, diz Paulo da Costa Domingos, poeta e editor da Frenesi, que se cruzou com Vitor Silva Tavares no início da década de 1970, quando o editor o publicou pela primeira vez, ainda na revista &etc que viria a converter-se na lendária editora com o mesmo nome.
Em 1974, ainda antes do 25 de Abril, Vitor Silva Tavares criou a &etc, uma pequena editora independente que se distingue, até hoje, pelo formato quadrado dos seus livros, pelo seu catálogo de autores e títulos raros e marginais e por se manter praticamente inalterável ao longo de mais de 40 anos de existência, apesar das transformações do negócio editorial. Sempre recusou a ideia de publicar livros para fazer lucro. Entre os autores publicados pela &etc contam-se Herberto Helder (Cobra, 1977), Alberto Pimenta, João César Monteiro, Antonin Artaud, Adília Lopes, Henri Michaux, Sade, Robert Walser, entre muitos outros.
Era também escritor, mais raro do que regular. “Escrevo o que me apetece, quando me apetece. E quase sempre não me apetece”, disse numa entrevista à revista Ler em 2012. Púsias, um livro de poesia satírica, foi publicado este ano numa edição artesanal, pela 50Kg.
Do &etc à &etc
Nascido em 1937, Vitor Silva Tavares era um “lisboeta da Madragoa”, como fazia questão de lembrar. E continuava a ser: vivia na Rua das Madres e todos os dias ia a pé para a &etc, uma cave na Rua da Emenda, ao Chiado.
Começou como jornalista em Angola, onde viveu entre 1959 e 1962, no jornal O Intransigente. Já em Lisboa, fez crítica de cinema na Flama e noJornal de Letras e dirigiu o suplemento literário do Diário de Lisboa.
Tornou-se editor, como dizia, “por mero acaso”. Surgiu o convite para dirigir a Ulisseia, onde publicou Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon, livro anti-colonialista em plena guerra colonial, os surrealistas portugueses – que nenhuma editora publicava – e o primeiro livro de Luiz Pacheco, Crítica de Circunstância, que é apreendido pela PIDE. A &etc começou por ser um magazine de cultura do Jornal do Fundão, onde José Cardoso Pires também escrevia, e foi depois uma revista, entre 1973 e 1974. Por ter começado como magazine, Vitor Silva Tavares continuou sempre a falar da editora no masculino, dizendo “o &etc”.
Fazia pequenas tiragens e não reeditava as obras esgotadas, preferindo lançar novos títulos. A única excepção foi O Bispo de Beja, de Homem-Pessoa, poema satírico e anticlerical, que voltou a editar depois de o livro ter sido apreendido em 1980 – seis anos depois do 25 de Abril – por ordem do Ministério Público e os seus exemplares terem sido queimados no Tribunal da Boa Hora durante o julgamento do editor, acusado de abuso de liberdade.
“Um editor solidário veio propor-me uma co-edição de cinco mil exemplares, o que recusei imediatamente (não queria explorar comercialmente um escândalo desses). Tratava-se de um caso político. A reedição é uma reincidência, um desafio às autoridades”, contou em 2007 ao jornal brasileiro K Jornal de Crítica.
Não fazia promoção dos livros, nos quais imprimia um rigoroso cuidado gráfico – exemplares encadernados à mão, o design das capas influenciado pelo construtivismo russo ou com as ilustrações de Luís Manuel Gaspar – que, a par do formato de falso quadrado (15,5 por 17,5 centímetros), os tornavam absolutamente reconhecíveis e distintos no mercado editorial.
“Talvez fosse um dos últimos editores que tinha uma relação de paixão com as artes tipográficas, absolutamente distinto dos gerentes e gestores das editoras”, diz Eduardo Sousa, editor e livreiro da Letra Livre.
“Quando se diz que o Vitor era um editor radical, não se está só a falar em política ou ideologia. O Vitor era um radical no tratamento da obra gráfica, um editor de livros, não de fotocópias, como há muitos por aí”, diz Paulo da Costa Domingos, que trabalhou de perto com Silva Tavares, a quem reconhece uma “ética inabalável” que se reflectia em todos os aspectos da sua vida, sobretudo no trabalho.
O editor da &etc fazia tudo para não trair “o espírito e a palavra” dos seus autores, diz o poeta, que coordenou o livro de homenagem aos 40 anos da &etc, Uma Editora no Subterrâneo (Letra Livre, 2013). Nunca lhe passaria pela cabeça publicar um texto de alguém de quem não gostasse, que não quisesse ter por perto. “A &etc é como uma impressão digital, é de um indivíduo. O que se publicava na &etc não era sujeito à apreciação de um colégio editorial – o Vitor decidia e estava decidido. Ele gostava ou não gostava e não sentia necessidade de explicar porquê.”
“Ele tinha uma grande abertura para poetas muito diversos e privilegiava os autores que iam surgindo à margem do chamado mainstream. Estava sempre muito atento, desperto”, diz o poeta Gastão Cruz, que foi publicado pela primeira vez por Silva Tavares em 1978 (Campânula). Foi outro poeta, Herberto Helder, que os aproximou. “Já não me lembro como foi, ando a ver isso nas cartas que troquei com o Herberto”. Gastão Cruz lembra que Vitor Silva Tavares só publicava “coisas em que acreditava”, mesmo quando estava entre os primeiros – se não era mesmo o primeiro – a “acreditar” em determinado autor.
A maneira de Silva Tavares trabalhar deixa lastro noutros projectos editoriais, a Frenesi de Paulo da Costa Domingos, a Averno de Manuel de Freitas, a Fenda de Vasco Santos, ou a Hiena de Rui Martiniano, que nasceram à luz da &etc e perpetuaram o seu “espírito”.
“É uma influência óbvia na minha geração de editores independentes, que trabalham com a mesma visão que ele tinha, do livro não como produto comercial mas como objecto cultural”, diz Eduardo Sousa, 58 anos.
“O Vitor contava histórias e ensinava a liberdade, a rebeldia e o humor a quem o rodeava. Desenhava projectos. Concretizava muitos”, recorda o editor Nelson de Matos, que trabalhou com Silva Tavares no suplemento literário do Diário de Lisboa e no Jornal do Fundão.
“Muita coisa do que vivemos hoje já não existe. Sobram os livros, a editora a que ele deu vida e prolongou até à actualidade. Sobra também a sua escrita, por aí dispersa, resistindo. À espera.”
Pedro Piedade Marques conhecia Silva Tavares apenas há três anos, mas é ao editor da &etc e à sua “imensa generosidade” que deve a monografia que vai lançar até ao final do ano, Editor Contra: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite, um volume sobre “outro dos nomes esquecidos” do mundo dos livros em Portugal.
“Não tinha um arquivo organizado, mas tinha uma memória fantástica. E a essa memória devo muitas das histórias que conto sobre o Ribeiro de Mello, sobre aquela Lisboa”, diz o editor deste volume que conta com dois textos inéditos de Silva Tavares.
Piedade Marques tencionava dedicar um outro livro aos três anos e meio em que Silva Tavares foi o responsável editorial pela Ulisseia, na década de 60: “Ele viveu aventuras incríveis com o Luiz Pacheco e com os surrealistas, editou muita coisa proibida. Teve, por exemplo, a coragem de publicar França, a emigração dolorosa, do Nuno Rocha, quando a emigração era um tema completamente tabu, em que ninguém tocava.”
2014-11-07, Público
Diogo Ramada Curto analisa na revista Ipsilon do jornal Público o livro da Letra Livre “Notícia do maior escândalo erótico-social do século XX em Portugal” de Zetho Cunha Gonçalves.
Botto heterónimo de Pessoa? Diogo Ramada Curto
«Botto e a homossexualidade: Zetho Cunha Gonçalves organizou uma impecável antologia com as peças mais importantes de uma polémica erótico-social.»
2014-10-10, Público
«A par da sua obra cinematográfica, João César Monteiro deixou uma obra escrita de peso, que começou agora a ser reunida de maneira sistemática»
2014-05-18, Malomil
Comentário à “Notícia do Maior Escândalo Erótico Social” editado pela Letra Livre
«A Letra Livre continua a marcar pontos. Desta feita, a polémica gerada pela 2ª edição, corria o ano de 1922, das Canções de António Botto. Há poucos dias, o meu querido amigo Luís Bigotte Chorão honrou o Malomil com um texto seu sobre a revista Contemporânea. Pois foi nas páginas da Contemporânea que Fernando Pessoa assinaria o artigo que espoletou a controvérsia. Uma contenda que até meteu, imagine-se, futuros nomes grandes do Estado Novo, como Marcello Caetano e Pedro Theotónio Pereira. Para quem julgue que se tratava de uma brincadeira de rapazes, que também o era, o artigo de Marcello Caetano diz muito do seu pensamento, à época e depois. A antologia dos textos da controvérsia é toda feita aqui, com introdução de Zetho Cunha Gonçalves. Simplesmente imprescindível.»
2013-11-25, Público
Público
Crónica publicada na “Revista 2” de domingo 24 de Novembro de 2013 ALEXANDRA LUCAS COELHO
1. Entre vir dos Estados Unidos e voltar ao Rio de Janeiro, tenho estado na Rua da Esperança, Madragoa, Lisboa. Um grande amigo de um grande amigo cedeu-me, pelo preço de um quarto, o terceiro andar de um prédio antigo, daqueles com grades de madeira antes da porta de casa. No quarto andar viveu Saramago muitos dos seus anos pré-Nobel. Soube assim, ao chegar, que Baltasar e Blimunda tinham nascido por cima da minha alcova, pequena e interior como manda o dicionário. É uma informação de peso, mas quanto a livrinhos o que penso todos os dias é que a duas ruas de mim vive o Vitor Silva Tavares.
2. Houve uma era, já depois do Paleozóico, em que existiram editoras e livrarias em Portugal. Não conglomerados com modelos de negócio género 25 por cento de desconto nas novidades porque é Natal, terra da fraternidade (e já agora isso acaba com os derradeiros independentes), mas editoras e livrarias uma por uma seguindo o seu caminho. É verdade, isto aconteceu mesmo. E os jornais tinham cadernos literários. E chegavam cartas escritas à mão. E uma por outra vez na vida essas cartas traziam um manuscrito do Vitor Silva Tavares (sem acento agudo, que ele não usa).
3. (Ele diria cartinhas, porque nisso é como os mexicanos: folhas brancas, caneta preta, uma letra quase escolar de tão legível, nos antípodas dos hieróglifos de Eduardo Lourenço, que também mandava manuscritos para a redacção do PÚBLICO, mas por fax, um artefacto da época.)
4. Um manuscrito do Vitor é um suplemento de ferro, tomem lá, ó esquálidos. Qualquer textinho lhe sai uma beleza, como se saísse assim da boca dele, pardal de muita conversa e muito livrinho. Em suma, o mais antigo editor paralelo em Portugal é toda uma língua. Paralelo, e não alternativo, porque uma editora paralela nunca se encontra com as outras, faz o seu caminho ao lado. No caso do Vitor, ao lado e subterrâneo. Não é uma metáfora, é uma morada: & etc, Rua da Emenda, 30, cave 3.
5. Vem tudo isto a propósito do livro & etc — uma editora no subterrâneo, iniciativa da livraria Letra Livre, coordenada por Paulo da Costa Domingos e lançada ontem no Teatro A Barraca, para celebrar 40 anos de resistência de Vitor Silva Tavares. Um livro quadrado, como os mais de trezentos da & etc, só maior e mais espesso (declaração de interesses: inclui uma entrevista que fiz ao Vitor em 2007 para o PÚBLICO, na versão longa que só saíra online). Revela inéditos, textos, desenhos, cartas e outros documentos, sem esquecer o auto de busca da Polícia Judiciária à edição de O Bispo de Beja. Foi a única vez que Vitor Silva Tavares fez uma reimpressão. De resto, quem tem os livrinhos da & etc guarde-os bem, não haverá outros iguais. E quem não tem, procure os há muito tempo não esgotados: conservam-se inteiros, sem o risco da guilhotina. O Vitor não faz livros para os destruir.
6. “Amante de livros e radicalmente livre”, diz o primeiro texto deste volume-celebração a propósito de Vitor Silva Tavares. Radicalmente livre é direito e dever, todo um programa solitário que dá trabalhinho, a começar pela liberdade de não trabalhar, ou de trabalhar sem alimentar o mercado. As páginas que contam esta história estão aí, é comprar o livro, não vou contar. Mas para quem não conhece a & etc, ou seja, em que consiste a resistência, cito desse texto inicial: “A singularidade da & etc reside não apenas no formato peculiar dos seus livros, verdadeiros objectos de arte negra, na riqueza literária do seu catálogo, em que pontificam a poesia e a escrita dissidente, mas também no seu modo de produção ímpar: todos os títulos têm apenas uma edição, com excepção única para O Bispo de Beja, obra apreendida e destruída em 1980 pelas autoridades democráticas da época; os autores abdicam tacitamente de cobrar honorários pelos seus direitos autorais; a tiragem, embora tenha oscilado face aos hábitos de leitura, é igual para todos os livros, independentemente do autor em questão; existe uma total recusa de subserviência aos poderes culturais; os livros são editados sem qualquer apoio institucional e impressos em pequenas tipografias e as formas de promoção do livro contradizem as práticas comuns do mercado: sem saldos, sem lançamentos ou ofertas aos críticos.”
7. Não é um modelo de desenvolvimento nem uma receita colectiva, mas o caminho de um só homem, com os laços que ele vai atando e desatando, do tipógrafo ao ilustrador. Contraposta a este pré-Natal de abusos de posições dominantes, quase uma espécie de guerrilha, a força de um homem livre.
2013-09-30, Jornal I
«“Os livros impossíveis.” É com esta frase que se sublinha um dos mais íntegros projectos livreiros que resistem entre o mirabolante concurso de stands editoriais a abundar hoje em Lisboa…»
Diogo Vaz Pinto escreve sobre a Livraria Letra Livre no Jornal I de 30 de Setembro de 2013, “Letra Livre. A última livraria da cidade”.
É uma das poucas forças que resistem ainda no labirinto de sombras e espelhos em que se transformou o mercado livreiro e editorial português. Diogo Vaz Pinto conversou com Eduardo Sousa, um dos três responsáveis pela aventura que há seis anos se projectou num dos mais ameaçados terrenos da cultura
É cada vez maior a massa confusa de gente que habita ou, num registo pendular, entope a doce trama de ruas da capital lusa. Um fluxo feroz que transita com uma vontade férrea, sem se perder nem ganhar o pulso a esta cidade com o seu acordar mais tarde do que as outras. Numa Lisboa cujo “coração tem que pulsar através da vigília e do sono” e que é cada vez mais estrangeira à massa que nela se embate, faz sentido que comecemos por oferecer umas coordenadas: se vem do Largo Camões pela Rua do Loreto e pela Calçada do Calhariz, ou então da Calçada da Estrela, passando pela Rua dos Poiais de S. Bento, à esquerda de quem desce e à direita para quem sobe, mais ou menos a meio da Calçada do Combro, no número 139, fica a Livraria Letra Livre.
“Os livros impossíveis.” É com esta frase que se sublinha um dos mais íntegros projectos livreiros que resistem entre o mirabolante concurso de stands editoriais a abundar hoje em Lisboa, já empurradas para a falência ou assimiladas a maioria das casas livreiras que serviam o hábito mais civilizador que o homem alguma vez adquiriu.
Para já ninguém ainda discute que a leitura está na base da formação dos nossos melhores espíritos, mas os números são claros: se cada vez são mais os que lêem, também se lê cada vez mais do mesmo. E como nos explica Eduardo Sousa, um dos três sócios da Letra Livre, cada vez mais os responsáveis pelos conteúdos que vão atolando diariamente os espaços do comércio livreiro são agentes do lucro, funcionários da canseira mercantil que gerem editoras como se se tratasse de “salsicharias”. Ou seja, casas que precisam de se desfazer da sua produção enquanto esta ainda está bem fresca e o seu cheiro não chega a feder denunciando a sua verdadeira natureza.
Já com uma vida dedicada ao subtil cheiro dos livros, o casal Eugénia e Eduardo conheceu Carlos quando trabalhavam os três numa outra livraria, a Ler Devagar – no Bairro Alto, ?Rua de São Boaventura, 115. Espaço amplo que, contando com uma galeria de exposições, paralelamente à venda dos livros apostava numa programação cultural alternativa, com leituras, debates, lançamentos de livros, etc. Quando esta fechou, em 2007, os três livreiros viram-se no desemprego. Foi então que arrendaram o número 139 da Calçada, que conta há muito com uma tradição de prestígio no que toca ao comércio dos livros.
Na pequena loja ergueram estantes até ao tecto, ocupando o espaço entre elas com duas ilhas, numa apertada composição com um peso sóbrio, hoje raro, destoando das iluminadas larguezas das superfícies comerciais modernas, com a sua elegância de aeroporto, entre partidas e chegadas de uma cultura cada vez mais internacional e exilar.
A Letra Livre distingue-se, sem ficar por cima nem por baixo, de outros projectos livreiros que tentam combater as facilidades oferecidas pelas grandes cadeias mantendo uma programação cultural, não indo por aí. Sem oferecer circo ou pão, aqui o que há são livros. Usados sobretudo, muitos esgotados, tantos fora de circulação, raros, preciosos, impossíveis ou quase. É um conceito tão simples que parece radical, uma proposta tão clara que não parece deste tempo.
De porta entreaberta para o velho assobio dos eléctricos, um gosto bom e popular na música que sempre se ouve aqui acostumou já quem vem e volta, mas são os livros na sua imensidade que põem uma selva a cantar nesta belíssima gaiola. De fora, basta olhar a montra para começar a receber lições.
Outro livreiro ilustre disse-me certa vez que “a tipografia é uma arte que nasceu velha, ensinada”. Mestre Luís Gomes, que por estes dias se despede com uma compungente tristeza da sua Artes & Letras – uma das livrarias alfarrabistas mais garbosas de Lisboa (Largo Trindade Coelho, 3) –, e que merecia desta cidade uma sincera homenagem.
Ora sem ser grande a montra da Letra Livre é das mais vaidosas, alinhando edições de clássicos nossos ou firmes sugestões da casa, livrinhos que não se deixam ler sem um certo respeito, um deslumbre com papéis que já não se usam e onde a tinta se afundava como se as palavras tivessem outra certeza. Quem partilha a paixão pelos livros saberá quanto estes detalhes estimam a atenção dos leitores. Mas avancemos.
Eduardo, Eugénia e Carlos não são apenas os compositores desta harmoniosa livraria, como são exemplares executantes de uma música antiga. A ideia de serviço, de uma atenção que não se fica pelos trejeitos da mais inócua simpatia, o esforço cuidadoso para responder aos pedidos e às urgências dos clientes para lá das facilidades que a tecnologia assegura, é esse conhecimento e experiência que acima de tudo nos obriga a reconhecer o talento deste trio. Não é apenas o gosto e a enorme familiaridade com os textos, com as edições e os autores, é também uma visão dos livros como elementos-chave da cultura, a sua importância enquanto legado inestimável e acessível.
Passados seis anos, a Letra Livre é hoje também um dos projectos editoriais mais notáveis entre aqueles que se têm afirmado como independentes num período especialmente complicado para quem não encara a edição como uma forma de fazer dinheiro. Sem especial jeito para o negócio, um catálogo que conta com apenas 22 edições (estando já no prelo outras duas) desenha um dos horizontes mais largos no campo editorial português. Com preferência pelos géneros arriscados, do ensaio à poesia, entre os autores publicados pela Letra Livre contam-se Miguel Unamuno, E. M. Cioran, Herbert Marcuse, Elizabeth Bishop, Orlando Ribeiro e Rui Caeiro (poeta nosso que, com uma obra de algumas dezenas de títulos em tiragens reduzidas, permanece praticamente desconhecido, talvez por ser um dos poucos poetas portugueses contemporâneos cuja qualidade supera claramente o que de melhor sobre ele se escreveu).
Eduardo explica que desde o início foi intenção dos três serem simultaneamente livreiros e editores, retomando uma firme tradição de um passado ainda recente, anterior à tendência para a especialização, que viu “aparecerem editores que nunca foram livreiros e livreiros sem qualquer pretensão de editar”. Isto conduziu, diz, a um certo desfasamento entre a perspectiva e o interesses do editor e do livreiro. Mas as alterações substanciais a que foi submetido o pequeno mercado dos livros em Portugal, sobretudo a partir da viragem do milénio, com a concentração livreira e editorial em grandes grupos, foi o que não só condenou grande parte das livrarias de referência de pequena e média dimensão, como produziu “um nivelamento do tipo de oferta que passou a ser feito neste mercado”. Porque “apesar de estas cadeias serem concorrentes, não pertencendo ao mesmo capital, a lógica gestionária que seguem é a mesma: trabalhar com novidades, basicamente ficção e best-sellers; manter uma alta rotatividade de livros; não possuir fundos nas livrarias (ou seja, não constituir boas secções temáticas com livros que foram editados ao longo dos anos); oferecer títulos que saíram nas últimas semanas e que vão ter uma breve passagem pelas livrarias, excepção feita àqueles que se mostrarem altamente lucrativos”. Tudo o resto, e mesmo a literatura chamada “light”, passa por um processo de reciclagem permanente. A maioria dos títulos editados, após um breve desfile pelas livrarias volta assim bem depressa aos armazéns dos editores e chegam a ser dados como esgotados quando na verdade são apenas livros que se perdem algures quando não são destinados a vendas de saldos ou, no caso dos grandes grupos editoriais, são simplesmente destruídos, servindo o fabrico de nova pasta de papel para dar seguimento a este ciclo industrial de morte antecipada.
Questionado quanto a se há alguma racionalidade que justifique este modelo, Eduardo diz que lhe parece irracional aplicado ao mercado dos livros como a tantos outros. Afinal o que se pode esperar da “produção sistemática de bens – uma das lógicas na base da sociedade de consumo – com os bens transformados em produtos que são destruídos e substituídos em função de campanhas de marketing e de modas?” Um regime que se torna contraditório e que ofende qualquer entendimento que ainda atribua valor ao livro como suporte privilegiado no espaço cada vez mais ameaçado da cultura.
“No entanto, como muito boa gente diz por aí, e principalmente os gestores dos grandes grupos editoriais, o livro é um produto comercial, sujeito portanto a todas estas regras e a este modelo. Modelo que foi importado, depois de se generalizar por todo o mundo, como, aliás, está bem descrito no último livro que editámos [”O Negócio dos Livros. Como os Grandes Grupos Económicos Decidem o Que Lemos”, de André Schiffrin], onde se mostra como, com a chegada destes paradigmas económicos à realidade editorial e livreira, o livro foi reduzido a essa condição, um produto comercial com um prazo de validade limitado”, desabafa Eduardo, acrescentando: “Ninguém já equaciona que um livro possa ser editado para se vender ao longo de décadas nem, muito menos, ao longo de séculos. Não obstante, nós sabemos que é assim que se vende um livro. Não nos passaria pela cabeça que um grande autor, seja ele um Shakespeare seja um Alexandre Herculano, tenha uma obra sua editada ou reeditada hoje e que venda milhares e milhares de exemplares em dois ou três meses. Sobretudo num contexto adverso, e ainda mais num mercado relativamente pequeno como o português.”
Ao sair da Letra Livre, subindo a calçada para me ver desaguar no mar ressacado dos vendilhões do Chiado, segue uns passos à minha frente a convicção de que, se esta não é a única livraria da cidade, é certamente a última, pois nenhuma outra está tão firme no presente nem mantém acesa a memória de um tempo em que as livrarias eram os recantos onde ganhava forças o sangue antigo de Lisboa.
2013-06-20, Cadeirão de Voltaire
Sara Figueiredo Costa
«Dezenas de editoras, a maioria das quais hoje desaparecidas enquanto casas independentes, estavam nessa altura a produzir livros intelectualmente relevantes. Algumas, como a McGraw-Hill, que publicou grandes autores como Vladimir Nabokov, viraram-se para a área do livro técnico e de gestão. Outras, como a Schocken, a Dutton ou a Quadrangle, submergiram em grandes grupos económicos, tendo perdido identidade própria. Outras ainda, como a John Day e a McDowell Obolensky, juntaram-se aos anais da História, fazendo agora parte de um passado em larga medida esquecido.»
André Schiffrin, O Negócio dos Livros, Letra Livre (tradução de Octávio Lemos e Rui Lopo, intróito de Vítor Silva Tavares; pg. 92)
2013-06-08, Público
Retrato de um mundo em mudança, no dia que se segue à abertura de mais uma Feira do Livro de Lisboa.
António Rodrigues
2013-06, Edição Exclusiva
Edição Exclusiva
Blogue coletivo dos principais especialistas do livro em Portugal – o think tank do livro
http://edicaoexclusiva.blogspot.pt Hugo Xavier
Gestão da ‘mercadoria cultural’ livro
http://edicaoexclusiva.blogspot.pt/2013/06/gestao-da-mercadoria-cultural-livro.html
2008-10, Le Monde Diplomatique
Le Monde Diplomatique Ricardo Noronha
A Memória e o Fogo Jorge Valadas Letra Livre, Lisboa, 2008, 158 pp., € 12.
Publicado originalmente em França, em 2006, A Memória e o Fogo foi traduzido para português por Júlio Henriques (que escreve também o prefácio) e Ana Paixão. Editada pela Livraria Letra Livre, beneficia de um esplêndido trabalho gráfico de Pedro Serpa (destaque para a capa, onde um casal de mendigos invisuais pede esmola na Avenida da Liberdade). Jorge Valadas – português exilado em França desde os anos 60, autor de várias obras de reflexão política de cariz libertário, participante nos Cadernos de Circunstância (1969-71) e no jornal Combate (1974-78), assinando frequentemente com o pseudónimo de Charles Reeve – reúne aqui em dezanove curtos ensaios as suas observações sobre os últimos anos de evolução da sociedade portuguesa, caracterizada como «o cenário invertido da eurolândia».
Trata-se de oferecer ao leitor uma imagem de Portugal em permanente oscilação entre o presente e o passado, detectando estranhas continuidades ao nível das mentalidades e atitudes, a recorrência de certos temas e o eterno retorno de velhos problemas. Tudo isto demarcando-se claramente dos exercícios de reflexão sobre o destino nacional ou a crise de identidade dos portugueses, também eles aqui abordados, com destaque para os de Eduardo Lourenço e José Gil. Recusando a imagem de uma colectividade nacional socialmente homogénea e atravessada pelo consenso, colectivamente aprisionada num destino comum e acorrentada à inevitabilidade da miséria, contrapõe-lhe as clivagens e antagonismos que percorrem «Portugal». Os fogos de verão, o arrastão que nunca existiu, o diploma de José Sócrates, o crescimento do desemprego e da pobreza, da criminalidade e da xenofobia, as ilusões de grandeza e o cinismo decadentista – de tudo isto Jorge Valadas retira ilações e significados, para oferecer ao leitor os contornos de um país onde a relativa passividade das classes dominadas permite aos poderosos os mais despudorados actos de mesquinhez, corrupção e pilhagem.
Ancorado numa perspectiva crítica simultaneamente familiarizada e distanciada, Valadas aborda questões como as migrações (tanto as dos imigrantes que chegam como as dos emigrantes que partem), a destruição do território e as dinâmicas de «modernização» da formação social portuguesa, com uma notável dose de humor e sarcasmo, e ainda os discursos, representações e atitudes de elementos destacados da burguesia portuguesa e respectivos ideólogos. O «racismo social» omnipresente na cultura mediática e que permanentemente desqualifica e menoriza as classes populares, o conservadorismo beato herdado da Inquisição e reactualizado no século XX pela censura, a difusão e banalização da violência entre os mais pobres, a incapacidade do Estado de alinhar os principais indicadores sociais ao nível dos restantes países da União Europeia, a pobreza do jornalismo e a superficialidade da produção cultural, o consumismo endividado da «classe média», a nostalgia do Império e da ordem bafienta do salazarismo – são outros tantos elementos ilustrativos do desencontro entre, por um lado, as estatísticas e o discurso oficial das instituições (para «eurocrata» ver) e, por outro, o país que envelhece e empobrece à margem/ apesar/por causa da modernização neoliberal em curso.
Um olhar lúcido sobre tudo isto nunca seria supérfluo e um livro escrito por um português exilado que acompanha com interesse o que aqui se passa só poderia ser bem-vindo. Mas Jorge Valadas faz bem mais do que isso e – sem retirar qualquer brilho às suas observações sociológicas fragmentárias mas certeiras – avança um conjunto de hipóteses interpretativas cuja pista apresenta mais do que um motivo de interesse. Como que elaborando uma história secreta de Portugal, procurou estabelecer um nexo entre o deserto presente e o abafar da iniciativa popular e proletária que, insubmissa, se fez sentir ciclicamente no passado. As figuras anónimas cuja existência descreve, tal como aquelas outras mais conhecidas cuja imagem resgata à apropriação pela cultura oficial – como Camões ou Antero de Quental –, são os protagonistas dos gestos de recusa, combate, afrontamento e crítica contra o Portugal dos pequeninos que actualmente se nos apresenta como uma fatalidade histórica.
Este livro foi escrito contra essa fatalidade e Jorge Valadas procurou descortinar, na complexidade dos acontecimentos históricos, as linhas com que se cose o presente, passando em revista – breve mas atentamente – as causas da decadência dos povos peninsulares, os impasses da Revolução Liberal, as convulsões da I República, a dura luta nas condições da ditadura e a explosão social do período de 1974-75. No «cenário invertido da eurolândia», não se limitou à denúncia da miséria ou à descrição exaustiva do deserto. Identificou caminhos e rotas, encontrou cúmplices e marginais, estabeleceu afinidades e divergências, avançou ideias preciosas com as quais desafiar o actual estado de coisas. Nesse sentido, a memória que nos transmite encontra-se carregada de futuro.